sexta-feira, 22 de novembro de 2019

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Crônica de um Amor Crônico

Todos os dias aquele senhor entrava no mesmo horário, sentava-se à mesma mesa e dali puxava assunto com todos do recinto. Apresentava-se como Sr. Mauro, Mauro Augusto. Sempre contava as mesmas histórias, as mesmas galhofas e anedotas. Era bem divertido vê-lo no alto do seu entusiasmo, como se houvesse algo inusitado em sua reincidente e costumeira fala. Como eu ainda era jovem, aprazia-me ficar adiantando-me às suas falas, imitando-lhe a cadência e o timbre de voz. Vez ou outra, ele adiantava ou transpunha o assunto, observando-se o momento e a oportunidade da condução da conversa. Ele sempre deixava transparecer um brilho no olhar e uma certa emoção ao falar, cheio de orgulho, do assunto mais importante de toda aquela cena: suas filhas. Pedia, sempre, o mesmo suco, dizia que não queria causar um mal estar, nem dar mau exemplo a elas, que logo chegariam para acompanhá-lo no almoço. Mexia o suco com a colher, nervoso, ansioso, mas sem perder a elegância. Olhava insistentemente ao seu relógio. Ora verificava se havia alguma ligação em seu smartphone, ora se tinha alguma mensagem em seu whatsapp. Embora não fosse muito novo, lidava bem com essas tecnologias. Seu aparelho não era lá o que se pudesse dizer “de última geração”, mas funcionava de forma a atender-lhe as necessidades de comunicação.
Começava o movimento do público do restaurante. Pessoas de todos os estilos frequentavam-no, todos os dias. Funcionários públicos, vendedores do comércio local, casais, adolescentes, famílias. Algumas dessas pessoas jamais retornariam, outras eram clientes rotineiros, com o Sr. Mauro.
Chegava a hora do rush e o burburinho ficava intenso. Já não mais se ouvia a sua voz em meio a tanta conversa, gargalhadas, tilintares e à música ambiente. Neste momento, todo o seu ânimo convertia-se em agonia. Sua espera por suas filhas era agonizante. Todos que conheciam aquela rotina sabiam o que aconteceria dali a algumas horas. Todos sofriam com aquela ansiedade, mas sorriam-lhe com simpatia. Alguém chegava e lhe dizia, em tom de compaixão, que poderia ter ocorrido algo que as pudesse ter atrasado. Outros sugeriam que ele ligasse, posto que algo poderia ter acontecido e elas poderiam estar precisando de sua ajuda. Mas ele não ligava. Era como se soubesse a resposta que receberia.
Ele dizia que a mais velha faria vinte e quatro anos, dali a alguns meses, e que a mais nova já contava doze anos.
O restaurante ia-se esvaziando. As pessoas começavam a se retirar e se lançar às suas atividades vespertinas. Nós, por nossa vez, tínhamos muitas tarefas a fazer: louças a recolher e lavar, mesas a limpar, lixo a acondicionar, chão a lavar, mesas a arrumar...
Ele se levantava, olhava por derradeira vez ao relógio, suspirava demoradamente, servia-se, pedia uma cerveja e procurava engolir aquela comida como se ela nada representasse que pudesse dizer-se de minimamente saborosa. Mastigava macrobioticamente, absorto, olhando para aquela porta, que logo seria fechada.
Nesse momento, toda aquela felicidade e faceirice que o tornavam esfuziante, às onze horas, pareciam ter-se transformado na mais pura tristeza, às quatorze. Dirigia-se ao caixa e dizia que houvera recebido uma mensagem e que elas iriam almoçar com ele, no dia seguinte, visto que haviam tido um contratempo. Tentando aparentar-se minimamente digno, pagava a sua conta, pedia mais uma cerveja e ia-se embora, em passos leves e lentos. No dia seguinte, lá estava ele de novo, na mesma hora, e tudo se repetia.
Há quem diga que um dia até viu, mesmo, duas moças que tinham aquela descrição, mas que atravessaram a rua, antes de chegarem a ele. Não deveriam ser elas, não. Outros dizem que, pela idade dele, certamente já não tenha filhas com aquelas idades. De certeza, sabe-se apenas que ele as amava muito. Vira e mexe ele tirava umas fotos, já quase sem imagem, da carteira e as mostrava, orgulhoso, como se houvesse a possibilidade de se enxergar algo nelas. De tanto que ele as descrevia, já era possível imaginá-las, mesmo sem as imagens, que só ele via.
Algumas pessoas diziam que ele jamais teve filhas, nem família. Uma psicóloga cogitou que o que ele tinha poderia ser, apenas, lembranças de algo que ele gostaria muito de ter vivido, mas que existia apenas em sua mente. A verdade, mesmo, ninguém nunca saberá. Já faz um bom tempo que ele não aparece mais lá pelo restaurante. Deve ter-se mudado para outro lugar. Quem sabe não teriam elas, finalmente, aparecido e o levado para conhecer seus netos, dado-lhe uma chance de sentir-se amado. O mais certo, mesmo, é que ele tenha sido internado, ou morrido, não sei. Nos últimos dias em que o vimos, ele andava tossindo muito. Estava abatido e, aparentemente, cansado. Já não brincava mais com as palavras, fazendo trocadilhos e gaiatices.
Uma coisa eu sei: que não desejo aquela situação para ninguém. Nem mesmo para a pior das pessoas. Ele não me parecia ser uma má pessoa. Não vejo a menor razão em uma pessoa que carregue um amor tão grande no peito passar a vida rejeitado ou esquecido, aguardando uma migalha qualquer de amor, carinho ou um mero gesto de atenção. Deus, me livre! Com licença. Tenho que atender àquela mesa.

Marcos Alderico
22/11/2019